Pessoas que largaram tudo para se aventurar nesse mundão de Au Pair!

04 abril 2018

O racismo e a China



Olá, meus futuros chinesinhos!


Hoje eu já vou começar fazendo dois avisos: o primeiro é sobre generalização. Sim, eu sei que não são todos os chineses e eu sei que não podemos basear nossa opinião em alguns acontecimentos. Maaas, depois de passar quase oito meses aqui vivendo em duas cidades diferentes e lidando com pessoas de todos os tipos, acho que posso opinar sobre o assunto. Além disso, faço parte de um grupo para pessoas de cor (eles usam o termo porque é destinada aos que não se identificam como caucasianos) e todos eles viveram situações semelhantes. Então...



O segundo aviso é para lembrar que essa é a minha visão sobre o assunto. Cada pessoa vai ter uma experiência. Essa foi a minha.



Com os avisos devidamente dados, vamos lá: o racismo e a China.



Muitas meninas e meninos me pedem indicação para conseguir famílias mais rápido e eu ajudo sempre que posso. Mas, em alguns casos, não consigo. E geralmente são quando eles são negros. Isso acontece porque a minha agência já me disse que eles não podem aceitar pessoas mais escuras que eu. Essas foram as palavras que eles usaram. Eles disseram que era muito difícil conseguir famílias que aceitassem viver com negros. E ah, me "elogiaram" dizendo que eu não sou escura de verdade, só um pouquinho. Meu tom de pele é aceitável. É, eu sei, eu sei.



Eu decidi começar o texto com essa fala mais forte para causar incômodo. Queria que vocês se sentissem como eu. Tente imaginar a cena: você, negro, ouvindo alguém dizer que não pode aceitar negros e que você precisa anunciar isso para eles. E pior: quando você diz que isso é racismo, tem como resposta:



- não, não somos racistas. Pessoas têm o direito de não gostar das coisas. A gente trabalha diariamente com negros, mas não gostamos de morar com eles. Chineses acreditam que passar muito tempo com negros rouba a nossa luz. Brancos trazem luz, por isso gostamos disso.



- não é racismo. Nós só não achamos que eles são bonitos. Pele escura não é atraente, não combina com roupas, não é legal.


- não é racismo. É que ninguém é obrigado a viver com um negro. Eles trouxeram isso para si mesmos. No passado, negros trouxeram drogas e brigas pra China. Nós não nos sentíamos seguros perto deles.

- o cheiro do negro é forte, é ruim. Você já foi no consulado africano? Você pode sentir o fedor só de chegar na porta.



- você está bem, você não é negra. Você é como uma branca escurecida. É aceitável.



- a gente achou piolho em uma menina branca. Foi uma surpresa para todo mundo! A gente foi procurar nos negros primeiro, não nos europeus. Como isso aconteceu? Eles são tão limpos!



Vou parar por aqui porque foram horas de discussão sobre o assunto e eu só queria sair de lá. Mas bem, você já conseguiu entender, certo? A pior parte é que eles realmente não acham que isso é racismo. Aqui, vários negros têm dificuldade para encontrar emprego porque eles são... negros. Você pode ter as qualificações necessárias e ser incrivelmente competente, mas se a sua pele é escura, você pode ser rejeitado. É uma história que eu vejo todos os dias. E isso é muito triste.



Faço parte de um grupo de vagas na China e todos os dias vejo inúmeros anúncios de vagas que falam "precisamos de brancos ou pessoas com traços europeus" ou "apenas brancos" ou "não aceitamos negros". Diferente do Brasil, que “esconde” o racismo por trás de respostas vazias quando o assunto é mercado de trabalho, aqui você tudo acontece de forma explícita. E isso ainda me choca diariamente.

Mas, se você está assuntado, pode ficar calmo. Diferente dos outros lugares do mundo, aqui eles não atacam os negros, não xingam ou fazem contato de forma agressiva. Até porque o racismo de muitos se mistura com a curiosidade de outros. Eles não conhecem cabelos crespos naturais (aqui, muitas chinesas fazem permanente para ter cachos), não veem pele negra com frequência, não conhecem muito sobre negros. Então é comum que eles te encarem, peçam fotos, tentem tocar no seu cabelo, nos seus braços... E você nunca vai saber quando é curiosidade e quando é preconceito. Às vezes eles vão evitar se sentar perto de você, às vezes eles vão encarar, às vezes eles vão conversar. Não tem como prever. Mas, de um jeito ou de outro, não é uma coisa que torne impossível viver aqui. Nós vivemos sim e resistimos todos os dias.

Eu sei que, lendo isso, tudo parece muito pesado. Sempre que comento com alguém, eu me sinto ainda pior por ter vivenciado e por ainda passar por esse tipo de situação. Acho que, por isso, demorei tanto para falar sobre isso. No início, eu queria acreditar que tudo era só questão de curiosidade. Mas, depois de um tempo, você começa a notar que não existem tantos negros ao seu redor, começa a ouvir comentários como os que eu ouvi, começa a ver anúncios, observar reações. Aí você entende que não é porque eles não querem, é porque muitos não conseguem estar aqui. Ou conseguem, mas precisam aceitar condições que não deveriam ser impostas, mas são por causa do tom de pele.

Antes de vir pra cá, eu perguntei sobre preconceito para alguns amigos e eles disseram que era bem tranquilo. A maior parte dele até reforçou que eles agem assim por curiosidade, não por racismo. E eu acreditei em tudo isso até sentir os olhares. Eu entendo, é difícil para um branco entender o que é racismo. Você não pode esperar que uma pessoa que nunca vivenciou uma situação desagradável como a que negros vivem diariamente reconheça quando vê. Mas, para quem sabe o que é isso, reconhecer não leva nem um segundo. São coisas que só a gente vê.

O motivo de fazer esse texto? Eu não sei. Acho que precisava falar sobre isso, é importante. É importante saber que não é fácil, que o preconceito é descarado e que você vai enfrentar situações que ninguém deveria ter que enfrentar. Mas também para dizer que a gente resiste. E vamos continuar resistindo, porque nosso lugar é em todo lugar.
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Lola Cirino

4 comentários:

  1. Que texto forte, realmente o branco JAMAIS vai entender o que nos passamos

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    1. Pois é, eles não entendem. Até hoje me espanta ver a diferença das experiências deles e a dos negros aqui.

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